O DESAFIO DA DIVERSIDADE NO CULTO CRISTÃO
O processo de construção de uma celebração coletiva reúne várias vozes, mãos e posições diferentes. Desde a seleção das músicas, a escolha das leituras bíblicas, a inclusão de participações individuais, tudo converge para expressar a adoração da igreja local, um estilo que contemple diversas influências até que se alcance o máximo de representatividade do povo.
Numa igreja batista, por natureza marcada pela autonomia, que incentiva a liberdade de consciência e a consequente responsabilidade individual de seus membros, essa é uma tarefa espinhosa, mas com recompensa insuperável. Vale a pena todo esforço do pastor, do ministro de música, dos demais líderes envolvidos nas áreas de artes e comunicação para a construção coletiva do que chamamos de “culto”, de modo que ele venha manifestar a “multiforme graça de Deus” na adoração da comunidade.
Mesmo sendo este um ideal, reconhecemos a tendência pela uniformização que prioriza o conforto ou o poder. Sente-se aí o peso da tradição, do que já foi feito, do que se considera melhor, do passado. Recebemos uma herança riquíssima dos nossos pais espirituais e devemos valoriza-la também no que diz respeito à forma de cultuar em comunidade. Contudo, as novas gerações enriqueceram significativamente a liturgia das nossas igrejas e cabe-nos incorporar criticamente as marcas de um novo tempo.
A visão crítica e reflexiva nos levará a rejeitar as tentativas de imposição de um estilo pessoal sobre a coletividade, mesmo que venha do pastor. Essa tendência pode se manifestar na interpretação bíblica equivocada que quer ver um estilo uniforme de culto na igreja primitiva. Na verdade nunca existiu “a igreja primitiva” e sim “as igrejas cristãs do primeiro século”. Por isso deve-se aprender com seus diversos estilos culto.
Paulo Siepierski e Glenn Hinson dedicam um capítulo do livro “Vozes do Cristianismo Primitivo” a esse debate. Hinson afirma: “A característica mais óbvia a ser atribuída ao culto no primeiro século é diversidade”. O estudo mostra que dois estilos foram fornecidos pelo judaísmo: templo e sinagoga, e os outros dois nasceram de preocupações cristãs específicas: cenáculo e palavra.
Fica esclarecido, então, que qualquer experiência de uniformização da liturgia na igreja hoje tomando por fundamento o Novo Testamento é emocional ou política. Para ser coerente com o culto neotestamentário, a igreja deve zelar pela heterogeneidade quer seja na participação de todas as faixas etárias, quer na inclusão de ritmos e expressões artísticas diferentes. Idosos e adolescentes, homens e mulheres, doutores e analfabetos, comunicando através da celebração o milagre da unidade na diversidade.
A música de Guilherme Kerr, Unidade e diversidade expressa poeticamente este ideal:
Da multidão dos que creram era só um o coração
E a alma, uma somente, uma semente
Somente uma esperança brotando dentro da gente
Nosso era o pão cada dia,
Nosso era o vinho, santa folia
O que se parte reparte a própria vida
Quando ouço essa música sou levado cativo do sentimento de pertença à origem singela e profunda que essa canção lembra. Sou levado a ler Atos dos Apóstolos com esse vínculo afetivo, especialmente os capítulos 2 e 4, referenciados pelo autor. Deixo de perceber, no entanto, que Lucas não omitiu as crises e conflitos próprias desse período e incluiu em sua narrativa como desafios que ainda são atuais.
É um sentimento semelhante ao do “primeiro amor”. Vivi esta experiência na Primeira Igreja Evangélica Batista em Itamari, na década de noventa, quando ainda adolescente, e fui decisivamente influenciado pelo estilo do meu pastor, Osias Antônio Lima, obreiro veterano, com formação batista regular, e muito rigoroso em sua interpretação do que chamava “decência e ordem”, argumento usado pelo apóstolo Paulo na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 14 para tratar de culto.
Os anos naquela igreja formam minha origem e a herança recebida tem um valor especial. Mas percebi nos primeiros dois anos do ministério na Igreja Batista Sião em Camaçari, 2003 a 2005, que estava cometendo um grande equívoco. Associei minha experiência pessoal ao ideal bíblico de unidade. Tentei uniformizar o culto. Deixei de ouvir a comunidade, respeitar sua identidade que é espontânea e festiva.
A igreja respondeu de forma surpreendente. O número de adolescentes aumentou a ponto de formar um grupo forte e atuante. Até então sem espaço na celebração. Comecei a perceber que, após o término dos cultos, eles se juntavam à equipe de música e cantavam, dançavam, brincavam com alegria intensa. As crianças vibravam com aquele momento. Entendi, com certo grau de dificuldade, que aquele era o culto da igreja, pelo menos da sua maioria. Estabeleci com o ministro de música, irmão Valdivino Santos Filho, o objetivo de superar aquela diferença e unir os “dois cultos” para representar mais democraticamente o estilo da igreja.
A começar pelo pastor, a liderança da igreja, os pais, os membros mais maduros, todos devemos investir no diálogo. Com o compromisso de zelar pela centralidade de Deus em tudo, pela sinceridade como marca da adoração, pelos elementos essenciais de uma celebração, a saber: oração, palavra, comunhão, música, dedicação dentre outros. Ouvir o povo, conhecer o contexto local, fazer experiências, abrir a mente. Esses são desafios que encontramos na construção do culto coletivo.
As vozes das igrejas com cristianismo primitivo precisam ser ouvidas. Ouvimos no texto bíblico sobre a diversidade como característica fundamental do culto. O culto ideal não é o culto individual. O culto ideal não é o culto do pastor. O culto ideal é o culto da eternidade, o culto do milagre que une os diferentes. Os cristãos primitivos estavam mais próximos do culto visto por João e registrado no apocalipse, capítulo 7,9-10. Esse futuro precisa ser antecipado, nosso esforço deve ser nessa direção por obediência ao Cordeiro.
“Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma multidão, a qual ninguém podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, que estavam diante do trono, e perante o Cordeiro, trajando vestes brancas e com palmas nas suas mãos; E clamavam com grande voz, dizendo: Salvação ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro”.
Mais uma vez Guilherme Kerr conseguiu traduzir a visão do apóstolo exilado em melodia e poesia irretocável com a qual concluo essa conversa na esperança de ter contribuído para que você também colabore para que o culto na sua igreja local seja a antecipação do culto da eternidade.
De todas as tribos, povos e raças
Muitos virão Te louvar
De tantas culturas, línguas e nações
No tempo e no espaço, virão Te adorar
Bendito seja sempre o cordeiro
Filho de Deus, raiz de Davi
Bendito seja o Teu santo nome
Cristo Jesus presente aqui
Remidos, comprados, grande multidão
Muitos virão Te louvar
Povo escolhido, Teu reino e nação
No tempo e no espaço, virão Te adorar
E a nós só nos cabe tudo dedicar
Oferta suave ao Senhor
Dons e talentos queremos consagrar
E a vida no Teu altar pra Teu louvor.
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Pr. Petronio Borges